O salário por tempo

O salário por tempo


O próprio salário assume, por sua vez, formas muito variadas, circunstância que não se pode reconhecer por meio de compêndios econômicos, que, com seu tosco interesse pelo material, negligenciam toda diferença de forma. Mas uma exposição de todas essas formas pertence à teoria especial do trabalho assalariado, e não, portanto, a esta obra. Em contrapartida, aqui cabe desenvolver brevemente as duas formas básicas predominantes. Como podemos recordar, a venda da força de trabalho ocorre sempre por determinados períodos de tempo. A forma transformada em que se representa diretamente o valor diário, semanal etc. da força de trabalho é, portanto, a do “salário por tempo”, isto é, do salário diário etc. De início, devemos observar que as leis que regem a variação de grandeza do preço da força de trabalho e do mais-valor, leis que foram expostas no capítulo 15, transformam-se, mediante uma simples mudança de forma, em leis do salário. 

Do mesmo modo, a distinção entre o valor de troca da força de trabalho e a massa dos meios de subsistência em que se converte esse valor reaparece agora como distinção entre o salário nominal e o salário real. Seria inútil repetir, com respeito à forma de manifestação, o que já expusemos acerca da forma essencial. Limitar-nos-emos, por isso, a indicar alguns poucos pontos que caracterizam o salário por tempo. A soma de dinheiro que o trabalhador recebe por seu trabalho diário, semanal etc. constitui a quantia de seu salário nominal, ou do seu salário estimado segundo o valor. Porém, é claro que, conforme a extensão da jornada de trabalho, quer dizer, conforme a quantidade de trabalho diariamente fornecida pelo trabalhador, o mesmo salário diário, semanal etc. pode representar um preço muito diferente do trabalho, isto é, quantias de dinheiro muito diferentes para a mesma quantidade de trabalho. 

Assim, ao considerarmos o salário por tempo, temos de distinguir, por sua vez, entre a quantia total do salário diário, semanal etc. e o preço do trabalho. Mas como encontrar esse preço, isto é, o valor monetário de uma dada quantidade de trabalho? O preço médio do trabalho é obtido ao dividirmos o valor diário médio da força de trabalho pelo número de horas da jornada média de trabalho. Se, por exemplo, o valor diário da força de trabalho for de 3 xelins, o produto de valor de 6 horas de trabalho, e a jornada de trabalho for de 12 horas, o preço de 1 hora de trabalho será = 3 xelins/12 = 3 pence. O preço da hora de trabalho, assim obtido, serve de unidade de medida para o preço do trabalho. 

Depreende-se daí que o salário diário, semanal etc. pode permanecer o mesmo, ainda que o preço do trabalho caia continuamente. Se, por exemplo, a jornada de trabalho usual for de 10 horas e o valor diário da força de trabalho for de 3 xelins, o preço da hora de trabalho será de 33/5 pence; ele cairá para 3 pence quando a jornada de trabalho aumentar para 12 horas, e para 22/5 pence quando for de 15 horas. Mesmo 406 assim, o salário diário ou semanal permaneceriam inalterados. Por outro lado, o salário diário ou semanal podem aumentar, ainda que o preço do trabalho permaneça constante ou até mesmo caia. Se, por exemplo, a jornada de trabalho fosse de 10 horas e 3 xelins fosse o valor diário da força de trabalho, o preço de 1 hora de trabalho seria de 33/5 pence. Se, em virtude de crescente ocupação, e supondo-se que o preço de trabalho permaneça igual, o operário trabalhar 12 horas, seu salário diário aumentará para 3 xelins e 71/5 pence, sem que haja variação do preço do trabalho. 

O mesmo resultado poderia ser obtido aumentando-se a grandeza intensiva do trabalho, em vez de sua grandeza extensiva. A elevação do valor nominal do salário diário ou semanal pode, pois, ser acompanhada de um preço constante ou decrescente do trabalho. O mesmo vale para a receita da família trabalhadora, tão logo a quantidade de trabalho fornecida pelo chefe da família seja acrescida do trabalho dos membros da família. Existem, portanto, métodos para reduzir o preço do trabalho sem a necessidade de rebaixar o valor nominal do salário diário ou semanal. Conclui-se, como lei geral: estando dada a quantidade de trabalho diário, semanal etc., o salário diário ou semanal dependerá do preço do trabalho, que, por sua vez, varia com o valor da força de trabalho ou com os desvios de seu preço em relação a seu valor. 

Ao contrário, estando dado o preço do trabalho, o salário diário ou semanal dependerá da quantidade de trabalho diário ou semanal. A unidade de medida do salário por tempo, o preço da hora de trabalho, é o quociente do valor diário da força de trabalho dividido pelo número de horas da jornada de trabalho habitual. Suponha que esta última seja de 12 horas e que o valor diário da força de trabalho seja de 3 xelins, isto é, o produto de valor de 6 horas de trabalho. Nessas circunstâncias, o preço da hora de trabalho será de 3 pence e seu produto de valor somará 6 pence. Ora, se o trabalhador estiver ocupado menos de 12 horas por dia (ou menos de 6 dias por semana), por exemplo, somente 6 ou 8 horas, ele receberá, mantendo-se esse preço do trabalho, um salário diário de apenas 2 ou 11/2 xelins34. Como, segundo o pressuposto que adotamos, ele tem de trabalhar uma média diária de 6 horas para produzir apenas um salário correspondente ao valor de sua força de trabalho, e como, segundo esse mesmo pressuposto, de cada hora ele trabalha somente meia hora para si mesmo e outra meia hora para o capitalista, é claro que não poderá obter o produto de valor de 6 horas se estiver ocupado por menos de 12 horas. 

Se anteriormente vimos as consequências destruidoras do sobre trabalho, aqui descobrimos as fontes dos sofrimentos que, para o trabalhador, decorrem de seu subemprego. Se o salário por hora é fixado de maneira que o capitalista não se vê obrigado a pagar um salário diário ou semanal, mas somente as horas de trabalho durante as quais ele decida ocupar o trabalhador, ele poderá ocupá-lo por um tempo inferior ao que serviu originalmente de base para o cálculo do salário por hora ou para a unidade de medida do preço do trabalho. Sendo essa unidade de medida determinada pela proporção valor diário da força de trabalho/jornada de trabalho de um dado número de horas , ela perde naturalmente todo sentido assim que a jornada de trabalho deixa de contar um número determinado de horas. A conexão entre o trabalho pago e o não pago é suprimida. 

O capitalista pode, agora, extrair do trabalhador uma determinada quantidade de mais-trabalho, sem conceder-lhe o tempo de trabalho necessário para sua auto conservação. Pode eliminar toda regularidade da ocupação e, de acordo com sua comodidade, arbítrio e interesse momentâneo, fazer com que o sobre trabalho mais monstruoso se alterne com a desocupação relativa ou total. Pode, sob o pretexto de pagar o “preço normal do trabalho”, prolongar anormalmente a jornada de trabalho sem que haja qualquer compensação correspondente para o trabalhador. Isso explica a rebelião (1860) absolutamente racional dos trabalhadores londrinos, empregados no setor de construção, contra a tentativa dos capitalistas de impor-lhes esse salário por hora. A limitação legal da jornada de trabalho põe fim a esse abuso, embora não, naturalmente, ao subemprego resultante da concorrência da maquinaria, da variação na qualidade dos trabalhadores empregados e das crises parciais e gerais. 

Com o salário diário ou semanal crescente, é possível que o preço do trabalho se mantenha nominalmente constante e, apesar disso, caia abaixo de seu nível normal. Isso ocorre sempre que, permanecendo constante o preço do trabalho ou da hora de trabalho, a jornada de trabalho é prolongada além de sua duração habitual. Se na fração valor diário da força de trabalho/jornada de trabalho aumentar o denominador, o numerador aumentará ainda mais rapidamente. O valor da força de trabalho aumenta de acordo com seu desgaste, isto é, com a duração de seu funcionamento e de modo proporcionalmente mais acelerado do que o incremento da duração de seu funcionamento. Por isso, em muitos ramos industriais em que predomina o salário por tempo e inexistem limites legais para o tempo de trabalho, surgiu naturalmente o costume de só considerar normal a jornada de trabalho que se prolonga até certo ponto, por exemplo, até o término da décima hora de trabalho (“normal working day” [jornada de trabalho normal], “the day’s work” [trabalho de um dia] “the regular hours of work” [horário regular de trabalho]). 

Além desse limite, o tempo de trabalho constitui tempo extraordinário (overtime), e, se tomamos a hora como unidade de medida, é mais bem pago (extra pay), embora frequentemente numa proporção ridiculamente pequena. A jornada normal de trabalho existe aqui como fração da jornada efetiva de trabalho, e esta última frequentemente ocupa mais tempo durante o ano inteiro do que a primeira36. O aumento do preço do trabalho, decorrente do prolongamento da jornada de trabalho além de certo limite normal, assume, em diversos ramos industriais britânicos, a forma de que o baixo preço do trabalho durante o assim chamado horário normal obriga o trabalhador, se quer obter um salário suficiente, a trabalhar um tempo extraordinário, mais bem remunerado. 

A limitação legal da jornada de trabalho põe um fim a esse divertimento. É um fato geralmente conhecido que, quanto mais longa é a jornada de trabalho num ramo da indústria, mais baixo é o salário39. O inspetor de fábricas A. Redgrave ilustra esse fato mediante um resumo comparativo do período de duas décadas, entre 1839 e 1859, que mostra que o salário aumentou nas fábricas submetidas à Lei das 10 Horas, ao mesmo tempo que diminuiu nas fábricas nas quais se trabalha de 14 a 15 horas por dia40. Da lei segundo a qual “estando dado o preço do trabalho, o salário diário ou semanal depende da quantidade de trabalho fornecida”, concluímos que quanto menor seja o preço do trabalho tanto maior terá de ser a quantidade de trabalho ou tanto mais longa a jornada de trabalho para que o trabalhador assegure ao menos um mísero salário médio. 

A exiguidade do preço do trabalho atua, aqui, como estímulo para o prolongamento do tempo de trabalho. Por outro lado, porém, o prolongamento do tempo de trabalho produz, por sua vez, uma queda no preço do trabalho e, por conseguinte, no salário diário ou semanal. A determinação do preço do trabalho segundo a fórmula valor diário da força de trabalho/jornada de trabalho de dado número de horas demonstra que o mero prolongamento da jornada de trabalho, quando não há uma compensação, reduz o preço do trabalho. Mas as circunstâncias que permitem ao capitalista prolongar a jornada de trabalho de modo duradouro são as mesmas que, inicialmente, permitem-lhe e, por fim, obrigam no a reduzir também o preço nominal do trabalho, até que diminua o preço total do número aumentado de horas e, portanto, também o salário diário ou semanal. 

Basta, aqui, referir duas circunstâncias. Se um homem executa o trabalho de 11/2 ou de 2 homens, a oferta de trabalho aumenta, ainda que permaneça constante a oferta de forças de trabalho que se acham no mercado. A concorrência que assim se produz entre os trabalhadores permite ao capitalista comprimir o preço do trabalho, enquanto, por outro lado, o preço decrescente do trabalho lhe permite aumentar ainda mais o tempo de trabalho42. Rapidamente, porém, essa disposição de quantidades anormais de trabalho não pago, isto é, de quantidades que ultrapassam o nível social médio, converte-se em meio de concorrência entre os próprios capitalistas. Uma parte do preço da mercadoria é composta do preço do trabalho. No cálculo do preço da mercadoria não é preciso incluir a parte não paga do preço do trabalho. Ela pode ser presenteada ao comprador da mercadoria. Esse é o primeiro passo que impele a concorrência. 

O segundo passo que ela obriga a tomar consiste em excluir do preço de venda da mercadoria pelo menos uma parte do mais-valor anormal produzido pelo prolongamento da jornada de trabalho. Desse modo, constitui-se, primeiro esporadicamente e, em seguida, paulatinamente de maneira fixa, um preço de venda anormalmente baixo para a mercadoria, preço que se torna, daí em diante, a base constante de um salário miserável e de uma desmedida jornada de trabalho, do mesmo modo como, originalmente, ele era o produto dessas circunstâncias. Limitam ou apenas a mencionar esse movimento, já que a análise da concorrência não tem lugar aqui. Mas deixemos, por um momento, que fale o próprio capitalista. “Em Birmingham, a concorrência entre os patrões é tão grande que muitos de nós somos obrigados, como empregadores, a fazer o que nos envergonharíamos de fazer em outra situação; e, não obstante, não se obtém mais dinheiro (and yet no more money is made), mas é apenas o público que leva vantagem com isso.”Lembremo-nos dos dois tipos de padeiros londrinos, um vende o pão pelo preço integral (the “fullpriced” backers), o outro o vende abaixo de seu preço normal (“the underpriced”, “the undersellers”). 

Os “fullpriced” denunciam seus concorrentes perante a comissão parlamentar de inquérito nos seguintes termos: “Eles só existem porque, primeiro, enganam o público” (falsificando a mercadoria) “e, segundo, arrancam de seus trabalhadores 18 horas de trabalho pelo salário de 12 [...]. O trabalho não pago (the unpaid labour) dos trabalhadores é o meio de que se servem na luta da concorrência [...]. A concorrência entre os mestres-padeiros é a causa da dificuldade em suprimir o trabalho noturno. Um vendedor que vende seu pão abaixo do preço de custo, variável de acordo com o preço da farinha, escapa do prejuízo extraindo mais trabalho de seus trabalhadores. S e extraio apenas 12 horas de trabalho de meus empregados, mas meu vizinho, em contrapartida, extrai 18 ou 20 horas, ele tem necessariamente de me derrotar no preço de venda. Pudessem os trabalhadores insistir no pagamento do tempo extraordinário e rapidamente essa manobra teria um fim [...]. 

Grande parte dos empregados dos vendedores abaixo do preço de custo são estrangeiros, rapazes e outras pessoas forçadas a aceitar qualquer salário que possam obter.” Essa jeremiada é interessante também porque mostra como no cérebro dos capitalistas se reflete apenas a aparência das relações de produção. O capitalista não sabe que também o preço normal do trabalho encerra determinada quantidade de trabalho não pago e que precisamente esse trabalho não pago é a fonte normal de seu lucro. A categoria de tempo de mais-trabalho não existe de modo algum para ele, pois esse tempo está incluído na jornada normal de trabalho que ele acredita pagar quando paga o salário diário. Mas o que existe bem para ele é, sim, o tempo extraordinário, o prolongamento da jornada de trabalho além do limite correspondente ao preço usual do trabalho. 

Diante de seu concorrente, que vende abaixo do preço de custo, ele defende até mesmo um pagamento extra (extra pay) por esse tempo excedente. Ele não sabe, uma vez mais, que nesse pagamento extra também está incluído o trabalho não pago, assim como o preço da hora usual de trabalho. Por exemplo, o preço de 1 hora da jornada de trabalho de 12 horas é 3 pence, o produto de valor de metade da hora de trabalho, enquanto o preço da hora extraordinária de trabalho é 4 pence, o produto de valor de 2/3 da hora de trabalho. No primeiro caso, o capitalista se apropria gratuitamente da metade de uma hora de trabalho; no segundo, de sua terça parte.

Fonte: O capital, Karl Marx.