A fábrica

A fábrica


No início deste capítulo, tratamos do corpo da fábrica, da articulação do sistema de máquinas. Vimos, então, como a maquinaria, apropriando-se do trabalho de mulheres e crianças, aumenta o material humano sujeito à exploração pelo capital, de que maneira ela confisca todo o tempo vital do operário mediante a expansão desmedida da jornada de trabalho e como seu progresso, que permite fornecer um produto imensamente maior num tempo cada vez mais curto, acaba por servir como meio sistemático de liberar, em cada momento, uma quantidade maior de trabalho, ou de explorar a força de trabalho cada vez mais intensamente. Passemos agora à consideração do conjunto da fábrica, precisamente em sua forma mais desenvolvida. 

O dr. Ure, o Píndaro da fábrica automática, descreve-a, de um lado, como “a cooperação de diversas classes de trabalhadores, adultos e menores, que com destreza e diligência vigiam um sistema de maquinaria produtiva movido ininterruptamente por uma força central (o primeiro motor)” e, de outro, como “um autômato colossal, composto por inúmeros órgãos mecânicos, dotados de consciência própria e atuando de modo concertado e ininterrupto para a produção de um objeto comum, de modo que todos esses órgãos estão subordinados a uma força motriz, semovente”. Essas duas descrições não são de modo nenhum idênticas. 

Na primeira, o trabalhador coletivo combinado, ou corpo social de trabalho, aparece como sujeito dominante e o autômato mecânico, como objeto; na segunda, o próprio autômato é o sujeito, e os operários só são órgãos conscientes pelo fato de estarem combinados com seus órgãos inconscientes, estando subordinados, juntamente com estes últimos, à força motriz central. A primeira descrição vale para qualquer aplicação possível da maquinaria em grande escala; a outra caracteriza sua aplicação capitalista e, por conseguinte, o moderno sistema fabril. Esta é a razão pela qual Ure também gosta de apresentar a máquina central, da qual parte o movimento, não só como autômato, mas como autocrata. “Nessas grandes oficinas, a potência benigna do vapor reúne suas miríades de súditos em torno de si.” Com a ferramenta de trabalho, também a virtuosidade em seu manejo é transferida do trabalhador para a máquina. 

A capacidade de rendimento da ferramenta é emancipada das limitações pessoais da força humana de trabalho. Com isso, supera-se a base técnica sobre a qual repousa a divisão do trabalho na manufatura. No lugar da hierarquia de trabalhadores especializados que distingue a manufatura, surge na fabrica automática a tendência à equiparação ou nivelamento dos trabalhos que os auxiliares da maquinaria devem executar; no lugar das diferenças geradas artificialmente entre os trabalhadores, vemos predominar as diferenças naturais de idade e sexo. A divisão do trabalho que reaparece na fábrica automática consiste, antes de mais nada, na distribuição dos trabalhadores entre as máquinas especializadas, bem como de massas de trabalhadores que, entretanto, não chegam a formar grupos articulados entre os diversos departamentos da fábrica, onde trabalham em máquinas ferramentas do mesmo tipo, enfileiradas uma ao lado da outra, de modo que, entre eles, ocorre apenas a cooperação simples. 

O grupo articulado da manufatura é substituído pela conexão entre o trabalhador principal e alguns poucos auxiliares. A distinção essencial é entre operários que se ocupam efetivamente com as máquinas ferramentas (a eles se adicionam alguns operários para vigiar ou abastecer a máquina motriz) e meros operários subordinados (quase exclusivamente crianças) a esses operadores de máquinas. Entre os operários subordinados incluem-se, em maior ou menor grau, todos os feeders (que apenas alimentam as máquinas com o material de trabalho). Ao lado dessas classes principais, figura um pessoal numericamente insignificante, encarregado do controle de toda a maquinaria e de sua reparação constante, como engenheiros, mecânicos, carpinteiros etc. Trata-se de uma classe superior de trabalhadores, com formação científica ou artesanal, situada à margem do círculo dos operários fabris e somente agregada a eles. 

Essa divisão de trabalho é puramente técnica. Todo trabalho na máquina exige instrução prévia do trabalhador para que ele aprenda a adequar seu próprio movimento ao movimento uniforme e contínuo de um autômato. Como a própria maquinaria coletiva constitui um sistema de máquinas diversas, que atuam simultânea e combinadamente, a cooperação que nela se baseia exige também uma distribuição de diferentes grupos de trabalhadores entre as diversas máquinas. Mas a produção mecanizada suprime a necessidade de fixar essa distribuição à maneira como isso se realizava na manufatura, isto é, por meio da designação permanente do mesmo trabalhador ao exercício da mesma função. Como o movimento total da fábrica não parte do trabalhador e sim da máquina, é possível que ocorra uma contínua mudança de pessoal sem a interrupção do processo de trabalho. 

A prova mais contundente disso nos é fornecida pelo sistema de revezamento [Relaissystem], que começou a funcionar na Inglaterra durante a revolta dos fabricantes ingleses, de 1848 a 1850. Por fim, a velocidade com que o trabalho na máquina é aprendido na juventude descarta também a necessidade de empregar uma classe especial de trabalhadores exclusivamente no trabalho mecânico. Na fábrica, os serviços dos simples ajudantes podem, em parte, ser substituídos por máquinas e, em parte, permitem, em virtude de sua total simplicidade, a troca rápida e constante das pessoas condenadas a essa faina. Embora a maquinaria descarte tecnicamente o velho sistema da divisão do trabalho, este persiste na fábrica, num primeiro momento, como tradição da manufatura fixada no hábito, até que, sob uma forma ainda mais repugnante, ele acaba reproduzido e consolidado de modo sistemático pelo capital como meio de exploração da força de trabalho. 

Da especialidade vitalícia em manusear uma ferramenta parcial surge a especialidade vitalícia em servir a uma máquina parcial. Abusa-se da maquinaria para transformar o trabalhador, desde a tenra infância, em peça de uma máquina parcial. Desse modo, não apenas são consideravelmente reduzidos os custos necessários à reprodução do operário como também é aperfeiçoada sua desvalida dependência em relação ao conjunto da fábrica e, portanto, ao capitalista. Aqui, como em toda parte, é preciso distinguir entre a maior produtividade que resulta do desenvolvimento do processo social de produção e aquela que resulta da exploração capitalista desse desenvolvimento. Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. 

Lá, o movimento do meio de trabalho parte dele; aqui, ao contrário, é ele quem tem de acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, tem-se um mecanismo morto, independente deles e ao qual são incorporados como apêndices vivos. “A morna rotina de um trabalho desgastante e sem fim (drudgery), no qual se repete sempre e infinitamente o mesmo processo mecânico, assemelha-se ao suplício de Sísifo – o peso do trabalho, como o da rocha, recai sempre sobre o operário exausto.” Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele reprime o jogo multilateral dos músculos e consome todas as suas energias físicas e espirituais. 

Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo. Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tecnicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. 

A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder do “patrão” (master). Por isso, em casos conflituosos, esse patrão, em cujo cérebro estão inextricavelmente ligados a maquinaria e seu monopólio sobre ela, proclama à “mão de obra”, repleno de desdém: “Os operários fabris fariam muito bem em guardar na memória o fato de que seu trabalho é, na realidade, uma espécie inferior de trabalho qualificado, e que não há nenhum outro trabalho que seja mais fácil de se dominar, nem que, considerando-se sua qualidade, seja mais bem pago; que nenhum outro trabalho pode ser suprido tão rápida e abundantemente com um rápido treinamento dos menos experientes. [...] A maquinaria do patrão desempenha, de fato, um papel muito mais importante no negócio da produção do que o trabalho e a destreza do operário, trabalho que se pode ensinar em seis meses de instrução e que qualquer peão pode aprender.”

A subordinação técnica do trabalhador ao andamento uniforme do meio de trabalho e a composição peculiar do corpo de trabalho, constituído de indivíduos de ambos os sexos e pertencentes às mais diversas faixas etárias, criam uma disciplina de quartel, que evolui até formar um regime fabril completo, no qual se desenvolve plenamente o já mencionado trabalho de supervisão e, portanto, a divisão dos trabalhadores em trabalhadores manuais e capatazes, em soldados rasos da indústria e suboficiais industriais. “Na fábrica automática, a principal dificuldade estava na disciplina necessária para fazer com que os indivíduos renunciassem a seus hábitos inconstantes de trabalho e se identificassem com a regularidade invariável do grande autômato. Mas inventar um código de disciplina fabril adequado às necessidades e à velocidade do sistema automático e aplicá-lo com êxito foi uma tarefa digna de Hércules, e nisso consiste a nobre obra de Arkwright! Mesmo hoje, quando o sistema está organizado em toda sua perfeição, é quase impossível encontrar, entre os trabalhadores que atingiram a idade adulta, auxiliares úteis para o sistema automático.” 

O código fabril, em que não figura a divisão de poderes tão prezada pela burguesia, e tampouco seu ainda mais prezado sistema representativo, de modo que o capital, como um legislador privado e por vontade própria, exerce seu poder autocrático sobre seus trabalhadores, é apenas a caricatura capitalista da regulação social do processo de trabalho, regulação que se torna necessária com a cooperação em escala ampliada e o uso de meios coletivos de trabalho, especialmente a maquinaria. No lugar do chicote do feitor de escravos, surge o manual de punições do supervisor fabril. Todas as punições se convertem, naturalmente, em multas pecuniárias e descontos de salário, e a sagacidade legislativa desses Licurgos fabris faz com que a transgressão de suas leis lhes resulte, sempre que possível, mais lucrativa do que sua observância. 

Apontamos, aqui, apenas as condições materiais nas quais o trabalho fabril é realizado. Todos os órgãos dos sentidos são igualmente feridos pela temperatura artificialmente elevada, pela atmosfera carregada de resíduos de matéria-prima, pelo ruído ensurdecedor etc., para não falar do perigo mortal de se trabalhar num ambiente apinhado de máquinas, que, com a regularidade das estações do ano, produz seus boletins de batalha industrial. Ao mesmo tempo, a economia nos meios sociais de produção, que no sistema de fábrica atingiu pela primeira vez sua maturidade, transforma-se, nas mãos do capital, em roubo sistemático das condições de vida do operário durante o trabalho: roubo de espaço, ar, luz e meios de proteção pessoal contra as circunstâncias do processo de produção que apresentem perigo para a vida ou sejam insalubres, para não falar de instalações destinadas a aumentar a comodidade do trabalhador. Não tinha razão Fourier quando chamava as fábricas de “bagnos mitigados”

Fonte: O capital, Karl Marx.