Na forma imediata da circulação de mercadorias, que consideramos até o momento, a mesma grandeza de valor esteve presente sempre de um modo duplo: como mercadorias, num polo, e como dinheiro, no outro. Os possuidores de mercadorias, portanto, só entravam em contato entre si como representantes de equivalentes mutuamente existentes. Mas com o desenvolvimento da circulação das mercadorias desenvolvem-se condições por meio das quais a alienação da mercadoria é temporalmente apartada da realização de seu preço.
Basta, aqui, indicar a mais simples dessas condições. Para ser produzido, um tipo de mercadoria requer mais tempo e outro, menos. A produção de diferentes mercadorias está ligada a diferentes estações do ano. Uma mercadoria é feita para um mercado local, ao passo que outra tem de ser transportada até um mercado distante. Por conseguinte, um possuidor de mercadorias pode surgir como vendedor antes que o outro se apresente como comprador. Com a repetição constante das mesmas transações entre as mesmas pessoas, as condições de venda das mercadorias regulam-se de acordo com suas condições de produção.
Por outro lado, a utilização de certos tipos de mercadorias, como uma casa, é vendida por um período de tempo determinado. Somente após o término desse prazo o comprador obtém efetivamente o valor de uso da mercadoria. Ele a compra, portanto, antes de tê-la pagado. Um possuidor de mercadorias vende mercadorias que já existem, o outro compra como mero representante do dinheiro ou como representante de dinheiro futuro. O vendedor se torna credor, e o comprador, devedor. Como aqui se altera a metamorfose da mercadoria ou o desenvolvimento de sua forma de valor, também o dinheiro recebe outra função. Torna-se meio de 160 pagamento.
O papel de credor ou devedor resulta, aqui, da circulação simples de mercadorias. Sua modificação de forma imprime no vendedor e no comprador esse novo rótulo. Inicialmente, trata-se de papéis tão evanescentes e alternadamente desempenhados pelos mesmos agentes da circulação como os de vendedor e de comprador. Mas agora a antítese parece menos cômoda e suscetível de uma maior cristalização. Os mesmos personagens também podem se apresentar em cena independentemente da circulação de mercadorias.
A luta de classes no mundo antigo, por exemplo, apresenta-se fundamentalmente sob a forma de uma luta entre credores e devedores e conclui-se, em Roma, com a ruína do devedor plebeu, que é substituído pelo escravo. Na Idade Média, a luta tem fim com a derrocada do devedor feudal, que perde seu poder político juntamente com sua base econômica. Entretanto, a forma-dinheiro – e a relação entre credor e devedor possui a forma de uma relação monetária – reflete aqui apenas o antagonismo entre condições econômicas de existência mais profundas. Voltemos à esfera da circulação de mercadorias.
Deixou de existir a aparição simultânea dos equivalentes mercadoria e dinheiro nos dois polos do processo da venda. Agora, o dinheiro funciona, primeiramente, como medida de valor na determinação do preço da mercadoria vendida. Seu preço estabelecido por contrato mede a obrigação do comprador, isto é, a soma de dinheiro que ele deve pagar num determinado prazo. Em segundo lugar, funciona como meio ideal de compra. Embora exista apenas na promessa de dinheiro do comprador, ele opera na troca de mãos da mercadoria.
É apenas no vencimento do prazo que o meio de pagamento entra efetivamente em circulação, isto é, passa das mãos do comprador para as do vendedor. O meio de circulação converteu-se em tesouro porque o processo de circulação se interrompeu logo após a primeira fase, ou porque a figura transformada da mercadoria foi retirada de circulação. O meio de pagamento entra na circulação, mas depois que a mercadoria já saiu dela. O dinheiro não medeia mais o processo. Ele apenas o conclui de modo independente, como forma de existência absoluta do valor de troca ou mercadoria universal.
O vendedor converteu mercadoria em dinheiro a fim de satisfazer uma necessidade por meio do dinheiro; o entesourador, para preservar a mercadoria na forma-dinheiro; o devedor, para poder pagar. Se ele não paga, seus bens são confiscados e vendidos. A figura de valor da mercadoria, o dinheiro, torna-se, agora, o fim próprio da venda, e isso em virtude de uma necessidade social que deriva do próprio processo de circulação. O comprador volta a transformar dinheiro em mercadoria antes de ter transformado mercadoria em dinheiro, ou efetua a segunda metamorfose das mercadorias antes da primeira.
A mercadoria do vendedor circula, realiza seu preço, porém apenas na forma de um título de direito privado que garante a obtenção futura do dinheiro. Ela se converte em valor de uso antes de se ter convertido em dinheiro. A consumação de sua primeira metamorfose se dá apenas posteriormente. Em cada fração de tempo do processo de circulação as obrigações vencidas representam a soma de preços das mercadorias, cuja venda gerou aquelas obrigações.
A quantidade de dinheiro necessária à realização dessa soma de preços depende, inicialmente, da velocidade do curso dos meios de pagamento. Ela é condicionada por duas circunstâncias: o encadeamento das relações entre credor e devedor, de modo que A, que recebe dinheiro de seu devedor B, paga ao seu credor C etc., e a distância temporal que separa os dois prazos de pagamento. A cadeia de pagamentos em processo, ou das primeiras e posteriores metamorfoses, distingue-se essencialmente do entrelaçamento das séries de metamorfoses de que tratamos anteriormente.
No curso do meio de circulação, a conexão entre vendedores e compradores não é apenas expressa. A própria conexão tem sua origem no curso do dinheiro e só existe em seu interior. O movimento do meio de pagamento, ao contrário, exprime uma conexão social que já estava dada antes dele. A simultaneidade e a justaposição das compras limitam a substituição das moedas em virtude da velocidade da circulação. Elas constituem, inversamente, uma nova alavanca na economia dos meios de pagamento.
Com a concentração dos pagamentos no mesmo lugar, desenvolvem-se espontaneamente instituições e métodos próprios para sua liquidação. Assim, por exemplo, os virements [transferências] na Lyon medieval. As dívidas de A para com B, de B para com C, de C para com A, e assim por diante, precisam apenas ser confrontadas umas com as outras para que se anulem mutuamente, até um determinado grau, como grandezas positivas e negativas. Resta, assim, apenas um saldo devedor a compensar. Quanto maior for a concentração de pagamentos, menor será esse saldo e, portanto, a quantidade dos meios de pagamento em circulação.
A função do dinheiro como meio de pagamento traz em si uma contradição direta. Na medida em que os pagamentos se compensam, ele funciona apenas idealmente, como moeda de conta [Rechengeld] ou medida dos valores. Quando se trata de fazer um pagamento efetivo, o dinheiro não se apresenta como meio de circulação, como mera forma evanescente e mediadora do metabolismo, mas como a encarnação individual do trabalho social, existência autônoma do valor de troca, mercadoria absoluta.
Essa contradição emerge no momento das crises de produção e de comércio, conhecidas como crises monetárias. Ela ocorre apenas onde a cadeia permanente de pagamentos e um sistema artificial de sua compensação encontram-se plenamente desenvolvidos. Ocorrendo perturbações gerais nesse mecanismo, venham elas de onde vierem, o dinheiro abandona repentina e imediatamente sua figura puramente ideal de moeda de conta e converte-se em dinheiro vivo. Ele não pode mais ser substituído por mercadorias profanas.
O valor de uso da mercadoria se torna sem valor, e seu valor desaparece diante de sua forma de valor própria. Ainda há pouco, o burguês, com a típica arrogância pseudo esclarecida de uma prosperidade inebriante, declarava o dinheiro como uma loucura vã. Apenas a mercadoria é dinheiro. Mas agora se clama por toda parte no mercado mundial: apenas o dinheiro é mercadoria! Assim como o cervo brame por água fresca, também sua alma brame por dinheiro, a única riqueza.
Na crise, a oposição entre a mercadoria e sua figura de valor, o dinheiro, é levada até a contradição absoluta. Por isso, a forma de manifestação do dinheiro é aqui indiferente. A fome de dinheiro é a mesma, quer se tenha de pagar em ouro, em dinheiro creditício ou em cédulas bancárias etc. Se considerarmos agora a quantidade total do dinheiro em circulação num período determinado, veremos que, dada a velocidade do curso do meio de circulação e dos 162 meios de pagamentos, ela é igual à soma dos preços das mercadorias a serem realizados mais a soma dos pagamentos devidos, menos os pagamentos que se compensam uns aos outros e, finalmente, menos o número de ciclos que a mesma peça monetária percorre, funciona ora como meio de circulação, ora como meio de pagamento. Por exemplo, o camponês vende seu cereal por £2, que servem, assim, como meio de circulação.
Em seguida, ele usa essa soma para pagar o linho que o tecelão lhe fornecera. As mesmas £2 funcionam, agora, como meio de pagamento. Então, o tecelão compra uma Bíblia com dinheiro vivo, e as £2 passam novamente a funcionar como meio de circulação, e assim por diante. Mesmo sendo dados os preços, a velocidade do curso e o equilíbrio dos pagamentos, a quantidade de dinheiro deixa de coincidir com a quantidade de mercadorias em circulação durante um certo período, por exemplo, um dia.
Continua em curso o dinheiro que representa mercadorias há muito tempo saídas de circulação. Circulam mercadorias cujo equivalente em dinheiro só aparecerá numa data futura. Por outro lado, os débitos contraídos a cada dia e os pagamentos com vencimento no mesmo dia são grandezas absolutamente incomensuráveis. O dinheiro creditício surge diretamente da função do dinheiro como meio de pagamento, quando certificados de dívida relativos às mercadorias vendidas circulam a fim de transferir essas dívidas para outrem.
Por outro lado, quando o sistema de crédito se expande, o mesmo ocorre com a função do dinheiro como meio de pagamento. Nessa função, ele assume formas próprias de existência nas quais circula à vontade pela esfera das grandes transações comerciais, enquanto as moedas de ouro e prata são relegadas fundamentalmente à esfera do comércio varejista. Quando a produção de mercadorias atingiu certo grau de desenvolvimento, a função do dinheiro como meio de pagamento ultrapassa a esfera da circulação das mercadorias.
Ele se torna a mercadoria universal dos contratos104. Rendas, impostos etc. deixam de ser fornecimentos in natura e se tornam pagamentos em dinheiro. O quanto essa transformação é condicionada pela configuração geral do processo de produção é demonstrado, por exemplo, pela tentativa – duas vezes fracassada – do I mpério Romano de arrecadar todos os tributos em dinheiro. A miséria atroz da população rural francesa sob Luís XI V, tão eloquentemente denunciada por Boisguillebert, Marschall Vauban etc., teve sua causa não apenas no aumento dos impostos, mas também na transformação do imposto pago in natura em imposto pago em dinheiro.
Por outro lado, quando a forma natural da renda do solo, que, na Ásia, constitui o elemento fundamental do imposto estatal, baseia-se em relações de produção que se reproduzem com a imutabilidade de condições naturais, aquela forma de pagamento conserva retroativamente a antiga forma de produção. Tal forma constitui um dos segredos da autoconservação do I mpério Turco. Se o comércio exterior, imposto ao J apão pela Europa, acarretar a transformação da rendain natura em renda monetárian, será o fim de sua agricultura exemplar. Suas estreitas condições econômicas de existência acabarão por se dissolver.
Em todos os países são estabelecidos certos prazos gerais de pagamento. Essas datas dependem, abstraindo-se de outros ciclos da reprodução, de condições naturais da produção, vinculadas às estações do ano. Elas também regulam os pagamentos que não derivam diretamente da circulação de mercadorias, tais como impostos, rendas etc. A quantidade de dinheiro requerida para esses pagamentos, disseminados por toda a superfície da sociedade e espalhados ao longo do ano, provoca perturbações periódicas, porém totalmente superficiais na economia dos meios de pagamento.
Da lei sobre a velocidade do curso dos meios de pagamento podemos concluir que a quantidade de meios de pagamento requerida para todos os pagamentos periódicos, sejam quais forem suas fontes, está em proporção inversão à extensão desses períodos de pagamento. O desenvolvimento do dinheiro como meio de pagamento torna necessária a acumulação de dinheiro para a compensação das dívidas nos prazos de vencimento. Assim, se por um lado o progresso da sociedade burguesa faz desaparecer o entesouramento como forma autônoma de enriquecimento, ela o faz crescer, por outro lado, na forma de fundos de reserva de meios de pagamento.
Fonte: O capital, Karl Marx