Dinheiro

Dinheiro


A mercadoria que funciona como medida de valor e, desse modo, também como meio de circulação, seja em seu próprio corpo ou por meio de um representante, é dinheiro. O ouro (ou a prata) é, portanto, dinheiro. Ele funciona como dinheiro, por um lado, quando tem de aparecer em sua própria corporeidade dourada (ou prateada), isto é, como mercadoria-dinheiro, nem de modo meramente ideal, como em sua função de medida de valor, nem como capaz de ser representado, como em sua função de meio de circulação; por outro lado, quando, em virtude de sua função, seja ela realizada em sua própria pessoa ou por um representante, ele se fixa exclusivamente na figura de valor, a única forma adequada de existência do valor de troca, em oposição a todas as outras mercadorias como meros valores de uso.

 a) Entesouramento 

O contínuo movimento cíclico das duas metamorfoses contrapostas da mercadoria ou a alternância constante entre a venda e a compra se manifesta no ininterrupto curso do dinheiro ou em sua função como perpetuum mobile [móvel perpétuo] da circulação. Mas assim que se interrompem as séries de metamorfoses, e a venda deixa de ser suplementada pela compra subsequente, ele é imobilizado, ou, como diz Boisguillebert, transforma-se de meuble em immeuble [móvel em imóvel], de moeda em dinheiro. 

Com o primeiro desenvolvimento da circulação das mercadorias, desenvolve-se também a necessidade e a paixão de reter o produto da primeira metamorfose, a figura transformada da mercadoria ou sua crisálida de ouro. A mercadoria é vendida não para comprar mercadoria, mas para substituir a forma-mercadoria pela forma dinheiro. De simples meio do metabolismo, essa mudança de forma converte-se em fim de si mesma. 

A figura alienada [entäusserte] da mercadoria é impedida de funcionar como sua figura absolutamente alienável [veräusserliche], ou como sua forma-dinheiro apenas evanescente. Com isso, o dinheiro se petrifica em tesouro e o vendedor de mercadorias se torna um entesourador. Nos estágios iniciais da circulação das mercadorias, apenas o excedente de valores de uso é transformado em dinheiro. O ouro e a prata se tornam, por si mesmos, expressões sociais da superfluidade ou da riqueza. 

Essa forma ingênua de entesouramento se eterniza em povos em que o modo de produção tradicional e orientado à autossubsistência corresponde a um círculo rigidamente fechado de necessidades. É o caso dos asiáticos, sobretudo dos indianos. Vanderlint, que fantasia que os preços das mercadorias sejam determinados pela massa do ouro e da prata existente num país, pergunta-se por que as mercadorias indianas são tão baratas. A resposta é: porque os indianos enterram seu dinheiro. 

Ele observa que, de 1602 a 1734, eles enterraram £150 milhões em prata, vindas originariamente da América para a Europa87. De 1856 a 1866, portanto, em dez anos, a Inglaterra exportou para a Índia e a China (grande parte do metal exportado para a China flui de volta para a Índia) £120 milhões em prata, que anteriormente fora trocada por ouro australiano. 

À medida que a produção de mercadorias se desenvolve, todo produtor de mercadorias tem de assegurar-se do nervus rerum, do “penhor social”88. Suas necessidades se renovam incessantemente e requerem a compra incessante de mercadorias alheias, ao passo que a produção e a venda de suas próprias mercadorias demandam tempo e dependem das circunstâncias. 

Para comprar sem vender, ele tem, antes, de ter vendido sem comprar. Essa operação, realizada em escala universal, parece contradizer a si mesma. Porém, em suas fontes de produção, os metais preciosos são trocados diretamente por outras mercadorias. Aqui, ocorre a venda (do lado do possuidor de mercadorias) sem a compra (do lado do possuidor de ouro e prata). E vendas subsequentes, sem serem seguidas por compras, têm como efeito apenas a distribuição ulterior dos metais preciosos entre todos os possuidores de mercadorias. 

Desse modo, em todos os pontos do intercâmbio surgem tesouros de ouro e prata, dos mais variados tamanhos. Com a possibilidade de reter a mercadoria como valor de troca ou o valor de troca como mercadoria, surge a cobiça pelo ouro. Com a expansão da circulação das mercadorias, cresce o poder do dinheiro, a forma absolutamente social da riqueza, sempre pronta para o uso. “O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é senhor de tudo o que deseja. Com o ouro pode-se até mesmo conduzir as almas ao paraíso” (Colombo, em sua carta da Jamaica,). 

Como no dinheiro não se pode perceber o que foi nele transformado, tudo, seja mercadoria ou não, transforma-se em dinheiro. Tudo se torna vendável e comprável. A circulação se torna a grande retorta social, na qual tudo é lançado para dela sair como cristal de dinheiro. A essa alquimia não escapam nem mesmo os ossos dos santos e, menos ainda, as mais delicadas res sacrosanctae, extra commercium hominum [coisas sagradas que não são objeto do comércio dos homens]. 

Como no dinheiro está apagada toda diferença qualitativa entre as mercadorias, também ele, por sua vez, apaga, como leveller radical, todas as diferenças. Mas o dinheiro é, ele próprio, uma mercadoria, uma coisa externa, que pode se tornar a propriedade privada de qualquer um. Assim, a potência social torna-se potência privada da pessoa privada. A sociedade antiga o denuncia, por isso, como a moeda da discórdia de sua ordem econômica e mora. 

A sociedade moderna, que já na sua infância arrancou Pluto das entranhas da terra pelos cabelos, saúda no Graal de ouro a encarnação resplandecente de seu princípio vital mais próprio. A mercadoria, como valor de uso, satisfaz a uma necessidade particular e constitui um elemento particular da riqueza material. Todavia, o valor da mercadoria mede o grau de sua força de atração sobre todos os elementos da riqueza material e, portanto, a riqueza social de seu possuidor. Para um possuidor de mercadorias barbaramente simples, e mesmo para um camponês da Europa Ocidental, o valor é inseparável da forma de valor e, por isso, o aumento do tesouro de ouro e prata é, para ele, aumento de valor. 

No entanto, o valor do dinheiro aumenta, seja em consequência de sua própria variação de valor, seja em consequência da variação do valor das mercadorias. Mas isso não impede, por um lado, que 200 onças de ouro continuem a conter mais valor que 100, 300 mais que 200 etc., ou que, por outro lado, a forma metálica natural dessa coisa continue a ser a forma de equivalente geral de todas as mercadorias, a encarnação diretamente social de todo trabalho humano. O impulso para o entesouramento é desmedido por natureza. 

Seja qualitativamente, seja segundo sua forma, o dinheiro é desprovido de limites, quer dizer, ele é o representante universal da riqueza material, pois pode ser imediatamente convertido em qualquer mercadoria. Ao mesmo tempo, porém, toda quantia efetiva de dinheiro é quantitativamente limitada, sendo, por isso, apenas um meio de compra de eficácia limitada. Tal contradição entre a limitação quantitativa e a ilimitação qualitativa do dinheiro empurra constantemente o entesourador de volta ao trabalho de Sísifo da acumulação. Com ele ocorre o mesmo que com o conquistador do mundo, que, com cada novo país, conquista apenas mais uma fronteira a ser transposta. 

Para reter o ouro como dinheiro e, desse modo, como elemento do entesouramento, ele tem de ser impedido de circular ou de se dissolver, como meio de compra, em meio de fruição. Ao fetiche do ouro o entesourador sacrifica, assim, seu prazer carnal. Ele segue à risca o evangelho da renúncia. Por outro lado, ele só pode retirar da circulação na forma de dinheiro aquilo que ele nela colocou na forma de mercadorias. Quanto mais ele produz, tanto mais ele pode vender. 

Trabalho árduo, parcimônia e avareza constituem, assim, suas virtudes cardeais, e vender muito e comprar pouco são a suma de sua economia política. A forma imediata do tesouro é acompanhada de sua forma estética, a posse de mercadorias de ouro e prata. Tal posse aumenta com a riqueza da sociedade civil. “Soyons riches ou paraissons riches” [“Sejamos ou pareçamos ricos”]. Assim se forma, por um lado, um mercado cada vez mais ampliado para o ouro e a prata, independentemente de suas funções como dinheiro, e, por outro, uma fonte latente de oferta de dinheiro, que flui principalmente em períodos de convulsão social. 

O entesouramento cumpre diferentes funções na economia da circulação metálica. A função mais imediata deriva das condições de circulação das moedas de ouro e de prata. Vimos que a quantidade de dinheiro em circulação sofre altas e baixas em razão das oscilações constantes que a circulação das mercadorias apresenta quanto à sua extensão, seus preços e sua velocidade. Portanto, ela tem de ser capaz de contração e expansão. Ora o dinheiro tem de ser atraído como moeda, ora é preciso repeli-lo. 

Para que a quantidade de dinheiro efetivamente corrente possa saturar constantemente o poder de absorção da esfera da circulação, é necessário que a quantidade de ouro ou prata num país seja maior que a quantidade absorvida pela função monetária. Essa condição é satisfeita pela forma que o dinheiro assume como tesouro. As reservas servem, ao mesmo tempo, como canais de afluxo e refluxo do dinheiro em circulação, o qual, assim regulado, jamais extravasa seus canais de circulação.

Fonte: O capital, Karl Max.