1. Os limites da jornada de trabalho
Partimos do pressuposto de que a força de trabalho é comprada e vendida pelo seu valor, o qual, como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção. Se, portanto, a produção dos meios de subsistência médios diários do trabalhador requer 6 horas de trabalho, então ele tem de trabalhar 6 horas por dia para produzir diariamente sua força de trabalho ou para reproduzir o valor recebido em sua venda. A parte necessária de sua jornada de trabalho soma, então, 6 horas e é, assim, mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, uma grandeza dada. Mas com isso ainda não está dada a grandeza da própria jornada de trabalho.
Suponha que a linha a____________b represente a duração ou a extensão do tempo de trabalho necessário, digamos, 6 horas. Conforme o trabalho seja prolongado em 1, 3 ou 6 horas, obtemos 3 outras linhas, que representam jornadas de trabalho de 7, 9 e 12 horas:
Jornada de trabalho I
a____________b___c
Jornada de trabalho II
a____________b______c
Jornada de trabalho III
a____________b____________c
O prolongamento bc representa a duração do mais-trabalho. Como a jornada de trabalho = ab + bc ou ac, ela varia com a grandeza variável bc. Como ab é dado, a relação de bc com ab pode ser sempre medida. Na jornada de trabalho I, ela é 1/6 , na jornada de trabalho II,3/6 e na jornada de trabalho III,6/6 de ab. Além disso, como a proporção tempo de mais-trabalho/tempo de trabalho necessário determina a taxa de mais-valor, esta é dada por aquela proporção. Nas três diferentes jornadas de trabalho, ela é de, respectivamente, 162/3 , 50 e 100%.
Inversamente, a taxa de mais-valor só não nos daria a grandeza da jornada de trabalho. Se, por exemplo, ela fosse de 100%, a jornada de trabalho poderia ser de 8, 10, 12 horas etc. Ela indicaria que os dois componentes da jornada de trabalho, o trabalho necessário e o mais-trabalho, são iguais, mas não a grandeza de cada uma dessas partes. A jornada de trabalho não é, portanto, uma grandeza constante, mas variável.
Uma de suas partes é, de fato, determinada pelo tempo de trabalho requerido para a reprodução contínua do próprio trabalhador, mas sua grandeza total varia com a 221 extensão ou duração do mais-trabalho. A jornada de trabalho é, pois, determinável, mas é, em verdade, indeterminada35. Embora a jornada de trabalho não seja uma grandeza fixa, mas fluida, ela só pode variar dentro de certos limites. Seu limite mínimo é, no entanto, indeterminável. É verdade que, se igualamos a zero a linha b__c, ou o mais-trabalho, obtemos um limite mínimo, isto é, a parte do dia que o trabalhador tem necessariamente de trabalhar para sua auto conservação.
Porém, com base no modo de produção capitalista, o trabalho necessário só pode constituir uma parte de sua jornada de trabalho, de modo que esta jamais pode ser reduzida a esse mínimo. Por outro lado, a jornada de trabalho possui um limite máximo, não podendo ser prolongada para além de certo limite. Esse limite máximo é duplamente determinado. Em primeiro lugar, pela limitação física da força de trabalho. Durante um dia natural de 24 horas, uma pessoa despende apenas uma determinada quantidade de força vital.
Do mesmo modo, um cavalo pode trabalhar apenas 8 horas diárias. Durante uma parte do dia, essa força tem de descansar, dormir; durante outra parte do dia, a pessoa tem de satisfazer outras necessidades físicas, como alimentar-se, limpar-se, vestir-se etc. Além desses limites puramente físicos, há também limites morais que impedem o prolongamento da jornada de trabalho. O trabalhador precisa de tempo para satisfazer as necessidades intelectuais e sociais, cuja extensão e número são determinados pelo nível geral de cultura de uma dada época.
A variação da jornada de trabalho se move, assim, no interior de limites físicos e sociais, porém ambas as formas de limites são de natureza muito elástica e permitem as mais amplas variações. Desse modo, encontramos jornadas de trabalho de 8, 10, 12, 14, 16, 18 horas, ou seja, das mais distintas durações. O capitalista comprou a força de trabalho por seu valor diário. A ele pertence seu valor de uso durante uma jornada de trabalho. Ele adquiriu, assim, o direito de fazer o trabalhador trabalhar para ele durante um dia. Mas o que é uma jornada de trabalho? Em todo caso, menos que um dia natural de vida. Quanto menos? O capitalista tem sua própria concepção sobre essa ultima thule a, o limite necessário da jornada de trabalho. Como capitalista, ele é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital.
Mas o capital tem um único impulso vital, o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor, de absorver, com sua parte constante, que são os meios de produção, a maior quantidade possível de mais-trabalho37. O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou do trabalhador 38. Se este consome seu tempo disponível para si mesmo, ele furta o capitalista39. O capitalista se apoia, portanto, na lei da troca de mercadorias.
Como qualquer outro comprador, ele busca tirar o maior proveito possível do valor de uso de sua mercadoria. Mas eis que, de repente, ergue-se a voz do trabalhador, que estava calada no frenesib do processo de produção: “A mercadoria que eu te vendi distingue-se da massa das outras mercadorias pelo fato de seu uso criar valor e, mais do que isso, um valor maior do que aquele que ela mesma custou. Foi por isso que a compraste. O que do teu lado aparece como valorização do capital, do meu lado aparece como dispêndio excedente de força de 222 trabalho. Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a da troca de mercadorias.
E o consumo da mercadoria pertence não ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. A ti pertence, por isso, o uso de minha força de trabalho diária. Mas por meio do preço que a vendo diariamente eu tenho de reproduzi-la a cada dia, pois só assim posso vendê-la novamente. Desconsiderando o desgaste natural pela idade etc., tenho de ser capaz de trabalhar amanhã com o mesmo nível normal de força, saúde e disposição que hoje. Não cansas de pregar-me o evangelho da ‘parcimônia’ e da ‘abstinência’.
Pois bem! Desejo, como um administrador racional e parcimonioso, gerir meu próprio patrimônio, a força de trabalho, abstendo-me de qualquer desperdício irrazoável desta última. Quero, a cada dia, fazê-la fluir, pô-la em movimento apenas na medida compatível com sua duração normal e seu desenvolvimento saudável. Por meio de um prolongamento desmedido da jornada de trabalho, podes, em um dia, fazer fluir uma quantidade de minha força de trabalho maior do que a que posso repor em três dias. O que assim ganhas em trabalho eu perco em substância do trabalho. A utilização de minha força de trabalho e o roubo dessa força são coisas completamente distintas.
Se o período médio que um trabalhador médio pode viver executando uma quantidade razoável de trabalho é de 30 anos, o valor de minha força de trabalho, que me pagas diariamente, é de 1/365 × 30, ou 1/10.950 de seu valor total. Mas se a consomes em 10 anos, pagas-me diariamente 1/10.950 em vez de 1/3.650 de seu valor total; portanto, apenas 1/3 de seu valor diário, e me furtas, assim, diariamente, 2/3 do valor de minha mercadoria.
Pagas-me pela força de trabalho de um dia, mas consomes a de 3 dias. Isso fere nosso contrato e a lei da troca de mercadorias. Exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal, e a exijo sem nenhum apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência. Podes muito bem ser um cidadão exemplar, até mesmo membro da Sociedade para a Abolição dos Maus-Tratos aos Animais, e viver em odor de santidade, mas o que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate um coração. O que ali parece ecoar é o batimento de meu próprio coração. Exijo a jornada de trabalho normal porque, como qualquer outro vendedor, exijo o valor de minha mercadoria.”
Vemos que, abstraindo de limites extremamente elásticos, a natureza da própria troca de mercadorias não impõe barreira alguma à jornada de trabalho e, portanto, nenhuma limitação ao mais-trabalho. O capitalista faz valer seus direitos como comprador quando tenta prolongar o máximo possível a jornada de trabalho e transformar, onde for possível, uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, e o trabalhador faz valer seu direito como vendedor quando quer limitar a jornada de trabalho a uma duração normal determinada.
Tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como uma luta em torno dos limites da jornada de trabalho – uma luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e., a classe capitalista, e o conjunto dos trabalhadores, i.e., a classe trabalhadora.
Fonte: O caital, Karl Marx.