A Divisão do Capital Quando o capital possuído por uma pessoa é suficiente apenas para mantê-la durante alguns dias ou semanas, raramente ela pensa em auferir alguma renda dele. Consome-o da maneira mais econômica que puder, e procura com seu trabalho adquirir algo com o qual possa repô-lo, antes de consumi-lo totalmente. Nesse caso, sua renda deriva exclusivamente de seu trabalho. Essa é a condição da maior parte de todos os pobres que trabalham em todos os países.
Quando, porém, a pessoa possui capital suficiente para manter-se durante meses ou anos, naturalmente procurará auferir uma renda da maior parte dele, reservando para seu consumo imediato somente o suficiente para manter-se até que a renda comece a entrar. Seu estoque total, portanto, distingue-se em duas partes. A parte que, segundo espera, lhe proporcionará a citada renda denomina-se capital.
A outra parte é a que lhe garante seu consumo imediato; esta parte consiste, primeiro, naquela porção de seu estoque total originalmente reservada para este fim; segundo, em sua renda, auferida de qualquer forma, na medida em que entra; ou, terceiro, em coisas que ele havia comprado com uma dessas duas em anos anteriores, e que ainda não estão totalmente consumidas, tais como: estoque de roupas, mobília doméstica, e similares.
Em um ou outro desses três itens consiste o estoque que as pessoas normalmente reservam para seu próprio consumo imediato. Há duas maneiras de se empregar um capital, para que ele proporcione uma renda ou lucro a quem o emprega. Primeiro, o capital pode ser empregado para obter, fabricar ou comprar bens, e vendê-los novamente, com lucro. O capital empregado desta forma não gera renda ou lucro a quem o emprega, já que permanece na posse da pessoa ou conserva a mesma forma.
As mercadorias do comerciante não lhe proporcionam renda alguma nem lucro, enquanto ele não os vender por dinheiro, e também o dinheiro não lhe proporciona renda ou lucro, enquanto por sua vez não for trocado por bens. Seu capital continuamente sai dele em uma forma e volta a ele de outra; somente mediante essa circulação ou trocas sucessivas pode ele proporcionar-lhe algum lucro. Por isso, esses capitais são adequadamente denominados de capitais circulantes.
Em segundo lugar, o capital pode ser empregado no aprimoramento da terra, na compra de máquinas úteis ou instrumentos de trabalho, ou em coisas similares que geram uma renda ou lucro sem mudar de donos, ou seja, sem circularem ulteriormente. Por isso, tais capitais podem com muita propriedade ser chamados de capitais fixos. Ocupações diferentes exigem porcentagens muito diferentes de capital fixo e de capital circulante empregados nelas. O capital de um comerciante, por exemplo, é integralmente um capital circulante.
Ele não tem necessidade de máquinas ou de instrumentos de trabalho, a não ser que os considere como tais sua loja ou armazém. Uma parte do capital de todo mestre artesão ou manufator deve consistir nos instrumentos de seu ofício. Essa parte é muito pequena em alguns ofícios e muito grande em outros. Um mestre alfaiate não precisa de outros instrumentos senão de certa quantidade de agulhas. Já os instrumentos de um mestre sapateiro são um pouco mais caros — embora muito pouco. Os do tecelão são bem mais caros do que os do sapateiro.
Entretanto, a maior parte do capital de tais mestres artesãos é capital circulante, consistindo nos salários de seus empregados ou no preço de seus materiais, reembolsados com lucro pelo preço do trabalho. Em outras ocupações, requer-se um capital fixo muito maior. Por exemplo, em uma grande fundição o forno para fundir minério, a forja, a máquina de corte são instrumentos de trabalho que só podem ser implantados com uma despesa muito elevada.
Em minas de carvão e nas minas de qualquer espécie, as máquinas necessárias para extrair a água e para outras finalidades não raro são ainda mais dispendiosas. A parte do capital do agricultor que é empregada nos instrumentos agrícolas constitui capital fixo; e a empregada nos salários e na manutenção de seus empregados é capital circulante. O agricultor aufere lucro do capital fixo, conservando-o em sua própria posse; e do capital circulante, gastando-o.
O preço ou valor de seu gado empregado na agricultura é capital fixo, bem como o dos instrumentos e equipamentos agrícolas; sua manutenção é um capital circulante, da mesma forma como a manutenção dos empregados. O agricultor aufere seu lucro mantendo o gado empregado na agricultura, como gastando na manutenção desse gado. Tanto o preço como a manutenção do gado que é comprado e engordado, não para trabalho na agricultura mas para venda, constituem capital circulante.
O agricultor aufere seu lucro gastando na compra e na manutenção do gado. Um rebanho de ovelhas ou de gado que é comprado, não para trabalhar na agricultura, nem para ser vendido, mas para se tirar lucro da lã, do leite e da procriação do mesmo, constitui um capital fixo. Aufere-se lucro, conservando esses rebanhos. A manutenção desse gado é um capital circulante. Aufere-se lucro desfazendo-se dele; sendo que ele retorna, juntamente com seu próprio lucro e com o lucro do preço total do gado, no preço da lã, do leite e de novas cabeças.
Também o valor total das sementes é capital fixo. Embora esse capital circule continuamente entre o solo e o celeiro, essas sementes nunca mudam de proprietário, e por isso não se pode dizer adequadamente que constituam capital circulante. O agricultor aufere lucro das sementes, não vendendo-as, mas multiplicando-as. O capital geral de um país ou de uma sociedade é o mesmo que a soma do capital de todos seus habitantes ou membros, e por isso se divide naturalmente nas mesmas três partes, e cada uma das quais tem uma função diferente.
A primeira é a parte reservada para o consumo imediato da sociedade, sendo que a característica dessa parte consiste em não gerar renda nem lucro. Consiste no capital em alimentos, roupas, mobílias domésticas etc. que foram comprados pelos seus consumidores mas ainda não estão totalmente consumidos. Também o capital total em casas para moradia, existente em um determinado momento do país, faz parte desta primeira porção.
O capital investido em uma casa, se esta se destina à moradia do proprietário, deixa a partir deste momento de ser capital, ou seja, deixa de proporcionar renda ao dono. Uma moradia como tal não traz renda alguma a quem mora nela; embora sem dúvida ela seja extremamente útil ao morador, é útil da mesma forma que lhe são a roupa e a mobília doméstica, as quais, porém, fazem parte de sua despesa, e não de sua renda. Se a casa for alugada a um inquilino para efeito de renda, já que a própria casa nada pode produzir, o inquilino sempre deverá pagar ao proprietário o aluguel, tirando-o de alguma outra renda, a qual o inquilino auferirá do trabalho, do capital ou da terra.
Embora, portanto, uma casa possa proporcionar renda a seu proprietário, e consequentemente tenha para ele a função de capital, não gera renda alguma para o público, nem pode ter a função de capital para este, sendo que uma casa jamais poderá aumentar, no mínimo que seja, a renda da sociedade como tal. Da mesma forma, as roupas e peças de mobília às vezes geram renda, cumprindo assim a função de capital para determinadas pessoas.
Em países em que costuma haver baile de máscaras, é uma ocupação alugar máscaras e roupas para uma noite. Com frequência, os tapeceiros alugam peças de mobília por mês ou por ano. Os donos de casas funerárias alugam por dia ou por semana os equipamentos para enterros. Muitas pessoas alugam casas mobiliadas, recebendo uma renda não somente pelo uso da casa, mas também pelo uso da mobília. Todavia, a renda conseguida deve sempre ser, em última análise, obtida de alguma outra fonte de renda.
De todas as partes do capital, seja de um indivíduo seja de uma sociedade, reservadas para o consumo imediato, a que consiste em casas é a que leva mais tempo para ser consumida. Um capital em roupas pode durar vários anos, mas um estoque de mobília pode durar meio século ou até um século inteiro; e um capital em casas, bem construídas e bem cuidadas, pode durar muitos séculos. Embora, porém, leve mais tempo para consumi-las totalmente, durante todo este período elas continuam constituindo um estoque real reservado para o consumo imediato, tanto quanto as roupas e a mobília doméstica.
A segunda parte na qual se divide o capital geral da sociedade é o capital fixo, cuja característica consiste em proporcionar renda ou lucro, sem circular ou mudar de proprietário. Ela consiste sobretudo nos quatro itens seguintes: Primeiro, todas as máquinas úteis e instrumentos que facilitam e abreviam o trabalho. Segundo, todas as construções que constituem meios de renda, não somente para seu proprietário, que as aluga para renda, mas também para a pessoa que as ocupa e paga o aluguel: tais são, entre outras, as lojas, depósitos, casas comerciais, sedes de propriedade rural com todas as suas construções necessárias; além disso, estábulos, celeiros etc.
Diferem muito das casas para moradia. São uma espécie de instrumento de trabalho, podendo portanto ser classificadas pelo mesmo critério. Terceiro, as melhorias ou benfeitorias da terra, ou seja, o que se investiu rentavelmente em roçar, limpar, drenar, cercar, adubar e colocá-la nas condições mais adequadas para amanho e cultura. Uma propriedade assim aprimorada pode com todo o direito ser considerada sob a mesma luz que as máquinas úteis que facilitam e abreviam o trabalho, e mediante as quais um capital circulante igual pode proporcionar uma renda muito maior a quem o emprega.
Uma propriedade dotada dessas melhorias é tão vantajosa como a mais durável de qualquer dessas máquinas, e frequentemente não requer outros reparos senão a mais rentável aplicação de capital do arrendatário empregado no cultivo dessa terra. Em quarto lugar, as habilidades úteis adquiridas por todos os habitantes ou membros da sociedade. A aquisição dessas habilidades para a manutenção de quem as adquiriu durante o período de sua formação, estudo ou aprendizagem, sempre custa uma despesa real, que constitui um capital fixo e como que encarnado na sua pessoa.
Assim como essas habilidades fazem parte da fortuna da pessoa, da mesma forma fazem parte da sociedade à qual ela pertence. A destreza de um trabalhador pode ser enquadrada na mesma categoria que uma máquina ou instrumento de trabalho que facilita e abrevia o trabalho e que, embora custe certa despesa, compensa essa despesa com lucro. A terceira e última das três partes em que naturalmente se divide o capital geral da sociedade é o capital circulante, cuja característica consiste em proporcionar renda somente circulando ou mudando de donos.
Também essa porção divide-se em quatro partes: Primeiro, o dinheiro, por meio do qual se faz a circulação das outras três, e a distribuição aos respectivos consumidores; Segundo, o estoque de provisões em poder do açougueiro, do criador de gado, do arrendatário, do comerciante de cereal, do fabricante de cerveja etc., e de cuja venda eles esperam auferir um lucro; Terceiro, os materiais, quer em estado totalmente bruto quer mais ou menos manufaturados, para fabricação de tecidos, mobílias e construções, que ainda não se inserem em nenhum desses três tipos mas que permanecem nas mãos dos cultivadores, dos manufatureiros e dos merceeiros, negociantes de fazendas, madeireiros, e marceneiros, dos fabricantes de tijolos etc.
Quarto e último, do trabalho acabado, mas que ainda está nas mãos do comerciante ou do manufator, e que ainda não foi vendido ou distribuído aos respectivos consumidores, tal como o produto acabado que freqüentemente encontramos pronto nas lojas do ferreiro, do marceneiro, do ourives, do joalheiro, do comerciante de porcelana etc. No caso, o capital circulante consiste nos suprimentos, nos materiais e nos produtos acabados de todos os tipos, que estão nas mãos de seus respectivos negociantes e no dinheiro necessário para fazê-los circular e distribuí-los aos que os utilizarão ou consumirão.
Dessas quatro partes, três — os suprimentos, os materiais e o produto acabado — são, anualmente ou em período mais curto, regularmente retiradas do capital circulante, sendo incorporadas ao capital fixo ou ao capital reservado para consumo imediato. Todo capital fixo deriva originalmente de um capital circulante, devendo ser continuamente mantido por ele. Todas as máquinas e instrumentos de trabalho úteis derivam originalmente de um capital circulante, que fornece os materiais dos quais são feitos, bem como a manutenção dos trabalhadores que os fabricam.
Além disso, requerem um capital da mesma espécie para mantê-los constantemente em bom estado. Nenhum capital fixo pode proporcionar renda a não ser através de um capital circulante. As máquinas e instrumentos mais úteis de trabalho não produzirão nada sem o capital circulante que assegure os materiais nos quais são usados e a manutenção dos empregados. A terra, mesmo que devidamente preparada, não proporcionará nenhuma renda sem um capital circulante, que mantenha os trabalhadores que a cultivam e colhem os produtos.
O único objetivo e finalidade, tanto do capital fixo como do circulante, consiste em manter e aumentar o capital que pode ser reservado para o consumo imediato. É esse capital que alimenta, veste e dá moradia à população. A riqueza ou pobreza da população depende do suprimento abundante ou escasso que esses dois tipos de capital têm condições de garantir ao capital reservado para o consumo imediato. Uma vez que uma parte tão grande do capital circulante é continuamente retirada dele para ser incorporada aos dois outros setores do capital geral da sociedade, é preciso reabastecer continuamente esse capital circulante, sob pena de logo deixar ele de existir. Essas fontes de abastecimento são sobretudo três: a produção da terra, das minas e da pesca.
Estas três fontes asseguram suprimentos e materiais contínuos, dos quais uma parte é depois transformada em produto acabado, e através dos quais são repostos os suprimentos, os materiais e o produto acabado continuamente retirados do capital circulante. Das minas extrai-se também o necessário para manter e aumentar aquela parte do capital circulante que consiste em dinheiro. Com efeito, embora, no curso normal da economia, o dinheiro não seja, como as outras três partes, necessariamente retirado do capital circulante para ser incorporado aos dois outros setores do capital geral da sociedade, também ele, como todas as outras coisas, acaba desgastando-se necessariamente, e às vezes se perde ou tem que ser exportado — motivo pelo qual também esta parte do capital circulante precisa ser continuamente reabastecida com novos suprimentos, embora, sem dúvida, muito menores.
As terras, as minas e a pesca requerem tanto um capital fixo como um capital circulante para explorá-las; sendo que a sua produção repõe com lucro não somente esses dois tipos de capital, mas todos os demais existentes na sociedade. Assim, o arrendatário repõe anualmente ao manufator os mantimentos que este consumiu e os materiais que ele processou no ano anterior; e o manufator repõe ao arrendatário o produto acabado que este gastou no mesmo período.
Este é o intercâmbio real anualmente efetuado entre essas duas categorias de pessoa, embora seja raro acontecer que o produto natural bruto do agricultor e o produto manufaturado do manufator sejam trocados diretamente um pelo outro, já que muito raramente acontece que o agricultor venda seus cereais e seu gado, seu fio de linha e sua lã exatamente à mesma pessoa da qual compra os tecidos, a mobília e os instrumentos de que necessita.
Ele vende sua produção bruta por dinheiro, com o qual pode então comprar, onde for possível, os produtos manufaturados de que carece. A terra até repõe, ao menos em parte, os capitais com os quais são exploradas a pesca e as minas. É a produção da terra que tira o peixe das águas; e é a produção da superfície da terra que extrai os minerais de suas entranhas. A produção da terra, das minas e da pesca, quando sua fertilidade natural for igual, é proporcional à extensão e à aplicação adequada dos capitais nelas empregados.
Quando os capitais são iguais e sua aplicação também é igual, a produção das três é proporcional à sua fertilidade natural. Em todos os países onde houver uma segurança razoável, toda pessoa de bom senso procurará empregar todo o capital sob seu controle, para desfrutá-lo atualmente ou para auferir dele um lucro no futuro. Se for empregado para uma satisfação imediata, temos um capital reservado para o consumo imediato. Se o empregar em função de um lucro futuro, este capital deverá proporcionar o referido lucro permanecendo com o dono ou procurando outras mãos.
No primeiro caso será um capital fixo, no segundo, um capital circulante. Num país onde houver tolerável segurança, insensata seria a pessoa que não empregasse todo o capital sob seu controle — quer se trate de capital de sua propriedade ou de capital emprestado de terceiros — de uma das três maneiras assinaladas. Com efeito, nesses países desafortunados, onde as pessoas estão continuamente expostas à violência de seus superiores, estas muitas vezes escondem grande parte de seu capital, a fim de tê-lo sempre à mão para levá-lo a algum lugar seguro, em caso de serem ameaçadas por algum desses infortúnios aos quais se sentem continuamente expostas.
Pelo que se conta, essa é uma situação que costuma ocorrer na Turquia, no Industão e, como acredito, na maior parte dos países da Ásia. Parece também ter sido uma prática comum entre os nossos antepassados, durante a época de violência dos governos feudais. Naquela época, considerava-se um tesouro descoberto e ainda sem dono como uma parte relevante da renda dos maiores soberanos da Europa.
Consistia em tesouros escondidos na terra e em relação aos quais ninguém podia alegar direitos. Naquela época, dava-se tanta importância a esses tesouros, que se considerava pertencerem sempre ao soberano, não cabendo direito nem a quem os descobrisse nem ao seu proprietário, a não ser que na escritura constasse uma cláusula expressa que garantisse a este último tal direito.
Colocavam-se esses tesouros em pé de igualdade com as minas de ouro e prata, as quais, salvo em casos de uma cláusula expressa na escritura, nunca se supunha pertencer à concessão geral das terras — embora as minas de chumbo, cobre, estanho e carvão o estivessem, por serem coisas de menor valor.
Fonte: Adam Smith. A riqueza das nações.